Quando nós olhamos para um vídeo em que um omelete se transforma em um ovo de galinha, nós sabemos que o filme está sendo exibido de trás para frente, porque no universo a entropia sempre cresce. Uma pergunta muito natural então é: como foi possível que o universo tenha formado estruturas como as galáxias e os planetas, e depois a vida na Terra, quando formar estruturas complexas parece desafiar a segunda lei da Termodinâmica?
É importante entender que a pergunta é capciosa, porque ela é baseada em uma premissa falsa: a de que a Termodinâmica é válida universalmente. Na realidade, a Termodinâmica é uma aproximação para descrever sistemas quando eles podem atingir rapidamente um estado em que suas variáveis não dependem mais do tempo. Muitas vezes isso não é possível, e a Termodinâmica é inaplicável. Isso é o caso para maior parte dos processos que ocorrem no universo. Esse tipo de fenômeno se denomina fora do equilíbiro térmico.
A formação das galáxias é um exemplo. A termodinâmica não se aplica porque o campo gravitacional depende do tempo. E o processo é complicado pela contínua aglomeração de massa que o campo gravitacional provoca. A redistribuição de massa no espaço muda de volta o campo gravitacional. O efeito combinado ao longo do tempo forma a rede cósmica, da qual eu já comentei outras vezes no blog. Do ponto de vista da Termodinâmica, a formação das galáxias pode parecer uma incógnita, mas é porque a origem das galáxias vem da dinâmica do campo gravitacional.
Outros dois exemplos importantes são a formação dos núcleos atômicos e a formação da radiação cósmica de fundo. Se nós fossemos usar a Termodinâmica em Cosmologia para descrever esses processos, iríamos obter respostas incorretas. Na formação do hélio, por exemplo, vê-se que a abundância do hélio em equilíbrio termodinâmico se torna relevante quando a temperatura é cerca de 3.5×109 K, e a Termodinâmica prevê que cerca de 31% dos bárions deveria estar em forma de hélio hoje. O valor correto é mais próximo de 25-27%. A Termodinâmica falha porque a formação do hélio precisa competir com o fato de que a densidade de prótons e nêutrons está decaindo no tempo. Os prótons e nêutrons vão se tornando menos densos por causa da expansão do universo. A formação do hélio não dura para sempre porque eventualmente a densidade é tão baixa que não permite mais reações nucleares ocorrerem. Além disso, a formação do hélio depende da presença dos nêutrons, que decaem rapidamente a medida que as reações nucleares perdem força para converter prótons em nêutrons. Se abdicarmos da Termodinâmica e calcularmos o processo dependente do tempo, chegaremos ao valor correto de 27%. A radiação cósmica de fundo se forma por um processo similar de competição em que os elétrons livres que ainda espalham fótons por efeito Compton vão desaparecendo ao serem capturados pelos núcleos para formar os átomos neutros de hidrogênio e hélio.
Quando nós não podemos usar a Termodinâmica para reações físicas mas ainda se quer fazer contas para um número grande de partículas, se usa física estatística fora do equilíbrio onde a dinâmica é comandada pelo que genericamente se chama equações de Boltzmann. O nome de Boltzmann deve indicar como já se sabia faz tempo as limitações da Termodinâmica.
O propósito desse comentário é o seguinte: não é necessária nenhuma mágica para entender como se formam estruturas complexas no universo onde vale a segunda lei da Termodinâmica. Basta aplicar as leis físicas relevantes para o processo microscópico (no caso da formação dos núcleos é a física nuclear, da formação das galáxias é a Relatividade Geral). A Termodinâmica é uma aproximação que nem sempre descreve todas as variáveis físicas, só aquelas que se tornam independentes do tempo.
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